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As gotas de orvalho são cristais que a natureza me deu. Estou pobre, não de dinheiro, mas de espírito.
Chove, mas não como nos outros dias. Sinto a aragem quente... Entrei na casa e suspirei de saudade. Passei aqui muito tempo, tenho muitas recordações daquele quarto e daquela sala e daquela cozinha, oh e daquele sofá em que tantas noites adormeci! Não me lembro de como ia parar ao quarto, talvez fosses tu, tu que com os teus braços fortes me pegavas e me poisavas na cama.
De manhã o cheiro a maresia percorria o corredor, tão bom que era! Era uma dose de energia que se instalava no meu corpo e ver-te dormir dava-me uma grande porção de felicidade. Dava-te um beijo e acordava-te. Sabes bem que sempre gostei de te irritar, adoro ver a tua cara de rezingão e já conheço esse teu mau humor matinal…
Hoje a casa está vazia. Quando será o dia (em que te voltarei a ver)?
Vamos lá falar do que interessa. Sou eu e tu, aqui, sem remorsos, sem passados nem futuros. Somos nós quem faz a história neste momento. Estou a desenhar-te o rosto e vejo cada traço teu. Constato que te sei de cor, com todas as certezas. Sou capaz de perceber o que pensas, mesmo quando estás calado. Sei o queres e o que não queres. Sei as tuas manias e teimosias, todos os teus vicios e virtudes.
Sou eu, sabes? Eu que apesar tudo estou aqui, a ouvir-te falar e a tentar entender-te, mas agora levanto-me. Vou-me embora. Vou ser alguém um dia, ou apenas mais alguém no mundo e alguém que esteve no teu mundo também. Sou eu quem agora dita as regras, sou dura, tornei-me fria. Agora sou assim e, se alguém algum dia conseguir fazer-me mudar, serei uma pessoa feliz.
Em tempos que já lá vão, ela passava na rua das Sete Fontes desejosa de o encontrar. Trazia no alforge um pouco de pão com manteiga, algum dinheiro e uma carta para lhe entregar. Todos os dias percorria aquele caminho, sempre com esperança, sempre com a carta na mão. Nunca lhe pôde dizer aquilo que queria, nunca conseguiu que ele soubesse o que lhe ia no coração.
A voz é fria, fraca, rouca. Já não há muito a fazer por ela, não há maneira de lhe cortar o mal pela raiz. É o fim, já viveu muitos anos, já passou por tudo.
Quando era nova achava que a vida era curta, agora já não pensa assim... A vida não é curta, não é longa, é o tempo que cada um deve ter.
O seu rosto tem as marcas de uma vida dura, cujo os anos estão traçados em cada ruga e cada uma delas tem um significado, tal como os cabelos grisalhos que possui.
Apesar de tudo está feliz.
Um bébé acaba de nascer, «como é?», «sai à avó». Tem os olhos da avó, os olhos que outrora enfeitiçaram aquele rapaz que tanto amou.
Mesmo com o seu ar de pura embriaguez notava-se a certo ponto o quão infeliz ele era. Os cabelos desalinhados, o andar de tonto, as palavras que soltava e que ninguém percebia e todo aquele cheiro a vodka puro e tabaco que o rondava faziam-no sorrir, algo que poucas vezes fazia quando estava sozinho. Deixa-se vaguear com o seu grupo pela cidade depois de toda aquela loucura naquela sexta-feira à noite. Já é de madrugada e já está sozinho. Todos os seus amigos desapareceram. Vagueia, cambaleia, olha para a direita e reconhece aquele sitio. Agora está sozinho e os seus supostos amigos estão longe. Aquele sitio é especial, já o conhece e bem. Nele brincara quando era inocente, sorria sem qualquer droga, era feliz por ser criança. Foi crescendo e deixando aquele local. Mudou de casa.
A dor de cabeça lembra-o da infelicidade dos últimos dias, perdeu tudo o que queria, errou e não lutou. Perdeu e não voltou a achar. Só lhe resta os amigos que tem, aqueles que o deixaram assim naquele estado, na sexta-feira à noite ou até no sábado de manhã.